domingo, 27 de março de 2011

Precisamos de um inimigo

É difícil a luta contra o que não se vê. É inglória a ausência de batalhas, a falta de campos onde se possa combater. Essa falta de um objetivo, de um alvo, que possa dar vazão à nossa indignação, tem-nos trazido a esse estado de letargia; não concordamos com os caminhos que estão dando ao nosso futuro, não aceitamos o descaminhos do nosso presente.

Mas contra quem especificamente podemos lutar? Os que já contamos com 30 ou 40 anos idos, não nos esquecemos de um inimigo comum contra o qual lutamos e pagamos com mortes. A ditadura era o inimigo. E era fácil identificar a ditadura: ela estava lá, entronada, burocratizada,controlando, patética... E ora ela estava cá, fardada, ameaçadora, patética.

 

Onde está o inimigo?

Mas, e hoje? Onde está o inimigo? A televisão especializou-se em atiçar os valores mórbidos que todos fingimos não ter. Mortes ao vivo, na hora do jantar. Desde o início da história, comunidades e civilizações dispensaram honras e respeito aos seus mortos. Hoje mostramos mortes como cenas de circo, sem respeito ao espírito ou à alma dos que se vão. Quem se importa com os amores e sonhos de um mexicano que morre afogado? Ou de uma brasileira morta diante da incompetência de um batalhão? Sempre matamos, sempre roubamos, sempre cometemos crimes. Mas nunca os cometemos com tamanha brutalidade e por tanta banalidade. E, se banal é a morte, banal é a vida. E banais são os viventes. Atiremo-los, pois, do alto das prisões e da febens.

Shows são armados em praça pública, para que os espertos extraiam da simplicidade dos que passam, o riso de escárnio que soltamos, dos outros, claro, por não termos piedade de nossa mesquinhez. O que há de mais odioso que um festival de pegadinhas, onde se abusa da simplicidade dos que outrora seriam felizes, por que deles é o reino dos céus? Qual de vocês, leitores de jornal, internautas esclarecidos, concordaria em ter sua imagem exposta ao ridículo, com o objetivo de aumentar os índices de popularidade de um programa de TV?

 

A ditadura e a democracia

Na época do inimigo fardado, nós éramos a democracia, nós éramos o país. Eles? Eles eram os outros, os que nos impediam de viver em plenitude. Idiotas que não viam que, livres, seríamos uma nação muito mais forte.

Hoje, em plena democracia, 100 mil marchando por emprego e lugar prá viver e plantar é antidemocrático! Os que, ao invés de se juntarem aos bandidos na orla das grandes cidades, optaram por querer ficar no campo, ah, esses são arruaceiros que ameaçam a paz pública. Os que carregam bandeiras são bandidos. Greve de professor? Pau neles.

Durante a ditadura, nem capa de toureiro escapava da pecha de comunista. "Precisamos da força, das armas sempre em punho, senão os comunistas nos dominam." Hoje, manifestações legítimas são antidemocráticas. Como outrora, nosso governo delimita bem a fronteira entre amigos e inimigos. "Se estão comigo são democráticos. Senão, são baderneiras que ameaçam a estabilidade do real". Estranha democracia.

Mas um burocrata, presidente do Banco Central, ir ao exterior dizer: "Invistam no Brasil, exceto em Minas Gerais" ah, isso não, isso não depõe contra nossa Ordem Constitucional. Isso é pela estabilidade financeira. Não importa quem ou quantos morram de amores pelo Itamar Franco. Mas ele é autoridade constituída, eleito legitimamente, o Itamar é democrático. A Federação dos estados brasileiros é cláusula pétrea da Constituição. Mas parece que o Presidente do BC é mais pétreo ainda.

Querido leitor, você não agüenta mais falar de política? Então preste atenção no treinador da Seleção Brasileira de Futebol. Lembra-se de, quando ainda podíamos ir ao estádio de futebol, gritarmos: vai, vai,vai...? Pois é, nosso treinador globalizado grita: "go, go, go...". É, não é gol não, mesmo porque gols andamos marcando poucos e feios, é vai em inglês mesmo.

 

Privatização

Os bens que conseguimos construir nas últimas décadas? Esses foram vendidos. Vendidos barato e ainda com garantia de isenção de impostos. E, na quase totalidade, vendidos com financiamento nosso. E com garantia de que os preços dos bens e serviços seriam reajustados pelo maior índice possível. Haja insegurança, haja medo de não conseguir vender. Isso é que é falta de amor-próprio, de auto-estima, de dar valor ao que é nosso. E de incompetência na gestão do que é de todos. Oferecemos tudo, quase de graça, e ainda comemoramos quando alguém compra.

Hoje temos um ministro todo-poderoso, zélia de terno. Esses ministros parecem zumbis, desprovidos de sensações, assexuados. Um sem tamanho de sem-graceza. Mas em tudo mandam. Pegam o dinheiro dos nossos bens privatizados e decidem que vão continuar pagando juros altíssimos, por pura falta de confiança no que fazem. Perguntem a eles onde está o dinheiro da privatização. Por que vendemos quase tudo e nossa dívida multiplicou-se? Não era prá ser ao contrário? Ah, o viés é de baixa! E o descaramento está em alta. Estamos há cinco anos no plano de transferência real de renda do setor produtivo para o setor financeiro. E abram-se as portas para os bancos internacionais porque, afinal de contas, somos ou não somos globalizados? Temos que mostrar ao mundo que somos bonzinhos, que abrimos nosso mercado de graça, sem pedir nada em troca, só para mostrarmos que somos gente-boa. Ou é muita falta de amor-próprio e de compromisso com as gerações futuras, ou é crime mesmo, desavergonhado, sem escrúpulos.

A novidade é que a Amazônia possa vir a ser "fiscalizada" pela ONU. Já abrimos mão da soberania sobre Minas Gerais, afinal, lá é terra do Itamar. Agora vamos concordar que não somos capazes de gerir a Amazônia e, talvez, também o Pantanal. Já tem estudante norte-americano aprendendo que a floresta amazônica é da humanidade e que o Brasil acaba onde ela começa. Já tem até mapa pronto. Eles planejam bem. Será trabalho para uma geração. Ensinam agora os que agirão no futuro. E nós? Ah, nós ensinamos aos nossos futuros que devemos ser cordeiros globalizados. Argumentos? Quem tem armas não precisa de argumentos, vem e toma. Mas, pode-se justificar: "lembram-se do dinheiro que demos a eles, através do FMI? Isso era dinheiro do povo norte-americano, pagando por aquele chão que eles depredavam. Agora não querem entregar o que compramos e já pagamos. Por isso, vamos lá tomar."

 

Os erros do presidente

O Presidente? Pobre coitado, professor que queria ser francês. Nunca tivemos um embaixador tão altivo. Ele só olha prá fora. Os brasileiros? Desempregados? Temos que manter o real. A vida real? Essa não importa. Mais perguntas. Aí ele chama o ministro: "Temos que olhar os números." E o povo, quem olha?

A cada dia, a cada fato, a cada fala, aumenta nossa letargia. E o que podemos fazer, derrubar o governo? Mas nós o elegemos e duas vezes. Claro que, agora, o presidente é contra a reeleição, mas ele já está reeleito. Derrubar o ministro? Mas o ministro obedece ao plano real. Derrubar o plano real? Mas não queremos inflação. Mas queremos emprego, comida, terra, orgulho nacional, sonhos e, se possível, algumas realizações.

 

Os nossos erros

Algo está errado. Mas não sabemos o quê. Falta-nos o inimigo. Falta-nos com quem lutar. Não faltam forças, mas não conseguimos reuní-las e direcioná-las pela falta de um objeto contra o qual possamos desferir nossos golpes. Talvez seja hora de nos voltarmos prá nós mesmos e achar lá dentro o inimigo. Matá-lo de uma vez por todas. Matar nossa descrença em protestar. Em dizer que não aceitamos corrupção, incompetência. Matar nosso medo em nos tornarmos políticos, políticos que trabalhariam pelo bem do país e não pelo nosso próprio. Rasgar os pudores e desprezar o medo de dizer que estamos dispostos a sacrificar nossa vida em prol do país, de nos dedicarmos a ele desprovidos de interesses excusos. Perder o medo de fazer coisas erradas, mas ter a coragem de dizer: erramos, mas já estamos consertando.

Destruir em nós a farsa de nos escondermos na polícia para sermos bandidos. De nos tornarmos advogados para burlar a lei. De sermos juízes para estarmos acima dela. De sermos economistas assexuados para nos saciarmos em poder. De sermos políticos para roubar o que é de todos. De sermos empresários para burlar o fisco. De sermos o fisco, para roubar os empresários.

O nosso inimigo está em nosso meio, no meio do nosso meio, no mais escondido rincão do nosso coração. Nosso inimigo é nossa covardia.

Título

Precisamos de um inimigo
Autor
Agostinho Rosa
Descrição
Uma análise do estado de letargia assumido pela sociedade brasileira perante atos governamentais, diante da má política e ante uma atuação inadequada da mídia.

 

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